
O Homem morre. Sua obra, jamais!
Logo: a morte é o caminho para a eternidade!
1992. Conheci o mestre Atílio Garret numa oficina de teatro de rua. Era março, eu tinha lá meus dezesseis anos, cabelos grandes e toda a rebeldia juvenil que a idade dá o direito. Atílio me olhou e sorriu ironicamente – uma ironia que, de certa forma, influenciaria parte da minha personalidade para sempre. Perguntou das minhas experiências artísticas: relatei os cursos freqüentados desde 1990, a peça no teatro Itália e o violão que eu tocava. Fez cara de surpreso, o canalha. Era muita banca pra pouca idade, e ele sabia. Me aceitou no grupo. Oficina de Teatro de Rua, na Oficina Cultural Luiz Gonzaga, ainda na rua Parioto, 402 – Jacuí: São Miguel ainda Paulista. Foi ali que o rebelde adolescente Dark’Ney deu espaço para o estudante e pesquisador de Artes Cênicas Claudemir Santos. Ali nascia o diretor.
2009. Dezessete anos depois, meu telefone toca às 23:13h. A voz de Gisélia Lima invade meus sentidos em um tom diferente, como quem tem algo a dizer a uma criança e, da maneira mais branda possível, ela me informa que Atílio Garret morreu ontem, 24 de Maio, e foi enterrado hoje, 25, em Guarulhos. O mundo pára por um instante. As preocupações somem. A vida perde o sentido. De imediato, tenho aquela sensação de vazio eterno invadindo meu peito e a recordação da última vez que o vi. Quer dizer que não iremos mais nos ver? Nunca mais? Surge ele me perguntando se já li Edgar Allan Poe, nos meses finais de 1992.
Gisélia tenta gentilmente puxar outro assunto, mas eu não tenho mais nada a dizer ou conversar. A mente é um turbilhão de ensinamentos ministrados pelo meu diretor mestre; o homem que me ensinou a aprender.
Certa vez, em 1993, no grupo Pandora: Atílio dirigia uma montagem com fragmentos de Martins Penna numa versão non sense (“Gente, sem senso não quer dizer sem sentido!”). Tinha algo a pesquisar e eu fui lá e pesquisei, levando para o grupo: o endereço da SBAT e a relação de textos em domínio público, coisas assim. Fui à Avenida São João, conheci o local, tomei notas, etc. Na reunião, mostrei ao grupo. Atílio pegou minhas anotações, abriu um caderno pessoal e conferiu com as suas.
“É isto mesmo, Gezoná.” – Várias vezes ele se referia a mim pelo nome do personagem de “O Grande Circo Padú”, o espetáculo resultado da oficina de teatro de rua, meu primeiro personagem sob sua direção. Ao ver que ele tinhas todas as informações que fui buscar, me revoltei. Por que ele dificultara o que era tão fácil?
“Mas você tinha tudo aí? Por que não passou pra gente?”
“Porque vocês precisam ir atrás do que vocês querem, não eu.”
Silêncio. Ele continua a reunião, definindo texto e personagens. Surge na mente Fabiana Guimarães (grupo Pandora) um ano depois, dizendo que precisava agradecer Atílio pro proporcionar seu crescimento artístico e entendimento da arte. Dou o recado e ele diz algo positivo sobre ela, desejando boa sorte a moça que jamais pisaria no palco outra vez, mas conseguia enxergar o mundo por outras perspectivas. No final de 93, eu sairia do Pandora e criaria o Alucinógeno Dramático em 94. Envei uma carta a Atílio, e ele me respondeu, dando aquela força. Eu precisava mesmo escolher meu caminho e praticar minha visão artística. Meses depois, Atílio foi assistir nosso primeiro espetáculo (A valsa dos mortos) e gostou bastante, apontando os pontos onde as coisas podiam ser melhores e elogiando o espetáculo para terceiros em encontros eventuais.
“Agora você é diretor, também! É isto aí, rapaz: mete as caras!”
Eu segui o conselho e, de repente, havia uma personalidade artística amadurecendo.
Entre erros e acertos, na estrada da arte encontrei o Atílio várias vezes. Sempre conversamos. Sempre pediu para que eu assistisse suas aulas e participasse das discussões; sempre me respeitou como pessoa e artista – e, é claro, sempre tirou onda da minha cara em todas as ocasiões possíveis –seu senso de humor era fantástico! E, em conseqüência...
Havia quem não gostasse do Atílio. Falavam de uma certa arrogância, de um humor ofensivo e uma certa desmistificação da coisa sagrada que era o teatro. Eu ria dos detratores e concordava com eles: “É por isto que eu gosto do Atílio; ele não tem viadagem, né?” – costumava dizer. Muita gente deixou de “gostar” de mim por eu gostar do Atílio que “destruía trabalhos”. A verdade é que Garret tinha um senso crítico e criativo muito apurado para os amadores que possuem DRT e se sentem profissionais por causa de um carimbo na carteira e iniciantes que desejavam elogios e aplausos para qualquer macacada que fizessem. Atílio pesquisava e incentivava a pesquisa. Estava sempre atrás de descobertas e transmissão de descobertas para proporcionar novas descobertas. Não era um artista acomodado, como a maioria é; estagnada no tempo e perdida no espaço da criatividade.
“Conhece tal coisa?” – pergunta ele.
“Não.” – responde o aluno.
“Então vai pesquisar. E não vai por mim, não, que eu posso estar errado ou querendo enganar você!”
Eu também não escapei desta rusga atiliana. Certa vez, num curso, no meio de um exercício, ele me interrompeu e disse:
“Pode parar! Seu corpo não tem cultura pra fazer este exercício!Vá praticar até estar preparado!”.
Poucas vezes me senti tão envergonhado. Outra vez, chamou minha atenção por causa da mania de endeusá-lo: “Você aprendeu porque quis, eu não te ensinei porra nenhuma! Você, você conquistou seu conhecimento!”
Não precisava de bajuladores, misticismos e coisas assim.
Gisélia desliga o telefone. É tarde, precisa dormir, talvez a gente se veja no dia seguinte. Desligamos. Mal dormi. Luz acesa: eu ainda não acreditava no fato. Na noite seguinte, Sacha Arcanjo diria “Pode acreditar porque é verdade. Precisamos mandar um e mail pra Elizete.” Enviamos. Eu tinha o telefone, mas ligar pra dizer o quê? O que se diz mesmo nestas horas? Quisera pudesse apenas exibir o coração e fazer surgir todo o sentido dos sentimentos.
Nos últimos anos nos vimos raramente, todas na Luiz Gonzaga. Anos atrás, nós seguíamos o Matéria Vertente para ver “Canudos”, “Os sertões” e “Sermões” em vários lugares de São Paulo e numa universidade de Guarulhos. Eu, Ivan Neris e Marcelo San, na Belina Ensemble, prestigiando, conversando e aprendendo com Garret, Elizete Gomes e Silvionê Chaves – estávamos correndo São Paulo também, com “Tempestade & Ímpeto” e “Uma Noite Lírica”: éramos colegas de trabalho conversando sobre nossa rotina artística. Aliás, a peça sobre Canudos virou o livro “Canudos, terra em chamas – história e teatro” pela FTD, em 1997. Este livro chegou na minha mão anos depois, autografado por Atílio e Elizete. Na dedicatória, ele escreveu: “que este livro ilumine seus conhecimentos e te instigue para novas pesquisas”. Não há data, mas lembro que estávamos montando “Maquiavel, Da Vinci e o Príncipe”. Era 2008.
“Você gosta destas coisas, né? Kafka, Poe, Maquiavel...”
Outra vez, nos encontramos de passagem na Oficina. Ele disse que eu estava careca, eu disse que ele estava gordo. Lembrou-lhe um conto de Luiz Fernando Veríssimo. Rimos. Piadas. Coisas assim. Amigos, sempre.
“Você velho, está mais bonito do que quando era novo!” – ele e o Sacha tirando sarro da minha adolescência do jeito que apenas velhos amigos que nos viram crescer podem fazer.
“Vou fazer um trabalho aqui amanhã. Vem assistir, mas não vai copiar depois, pô! O cara copia tudo que eu faço, Sacha! Assiste minha aula pra dar as dele!”
“O que eu posso fazer? Preciso seguir os passos do mestre!”
“Aparece aí amanhã, pra gente conversar um pouco.”
Não apareci. Não lembro o motivo. Mas não fui.
“Não acredito que ele morreu!”
“Pois acredite, Claudemir” – diz Sacha – “Infelizmente, é verdade.”
Verdade. Atílio sempre buscou a verdade em sua arte, e influenciou vários artistas que estão por aí, partindo de sua vertente para um novo rumo, tal qual ele gostava. No Pandora, depois de uma comida de rabo em todo o grupo, ele saiu da sala. As pessoas iam começar a cometer os mesmos erros. Eu os cortei e disse que devíamos conversar seriamente e a pensar arte com responsabilidade. O percebi na janela coçando o cavanhaque. Não esboçou nenhum gesto facial, apenas balançou a cabeça em sinal de aprovação, ajeitou os óculos e partiu. Pandora se foi. O Alucinógeno Dramático está aí até hoje e, da geração Atílio, ainda temos Isa Diaz e Marcos Antonyo. Já tivemos mais atilianos. Só assim o grupo funciona; com uma visão artística em comum. Em todos os momentos decisivos do grupo, eu recordo aquele movimento de aprovação do bom e velho Garret.
Hoje, descobrindo-me órfão de mestre, percebo que cresci e amadureci longe de suas asas, o que sempre era o desejo dele para com seus alunos: Atílio nos mostrava o céu e ensinava a usar as asas. Conquistar o céu dependia do desejo e esforço de cada alma, corpo e mente. Ele não era uma muleta! E devo confessar que ainda não sei voar direito – apesar de ter alunos e amigos que tem certa admiração por meu trabalho – e que ainda falta muito para realizar um vôo perfeito.
“Claudemir, você sabe quem faleceu?” – perguntou Gisélia, com a voz extremamente doce e cuidadosa.
“Não.”
“O Atílio.”
“...”
Eu, pássaro, sou lançado no céu por suas mãos. Quase caindo, mantenho o equilíbrio e me sinto feliz por ao menos conseguir manter meu vôo torto num céu nem tão azul assim. Olho para trás, querendo vê-lo admirar meu vôo desajeitado, mas ele está bem mais alto do que minha visão pode alcançar. Enquanto eu aprendia a voar, ele conquistava o Céu máximo. Há um sorriso em seu rosto, e um aceno de aprovação enquanto ruma em direção ao Sol. Tento fixar o olhar, mas minhas lágrimas impedem uma visão perfeita. Aceno adeus com o coração partido, mas feliz por saber que sempre estivemos no rumo certo de nossa existência. Viro o rosto para o futuro e sigo, tendo em minha alma a certeza de que, no passado, eu estive ao lado de um grande homem, que foi meu mestre e amigo.
(Atilio Garret faleceu em 26 de Maio de 2009 devido a problemas envolvendo rins e pulmões.)