Caros correlegionários,
sei que ando muito presente nos últimos dias, mas a necessidade metafilosófica de estar aqui, obriga-me a recorrer ao recurso primordial de nossa comunicação: a escrita.
E faço isso, como o título sugere, por um motivo, de fato, inusitado. Ei-lo: anteontem, quinta-feira, fui ao Teatro Popular do SESI, na Paulista, para assistir à peça "Não sobre o amor", da Sutil Companhia que, aliás, é responsável também por um dos trabalhos mais instigantes dos últimos anos nos teatros paulistas, "Avenida Dropsie", adaptada da HQ homônima de Will Eisner (o mesmo criador de "The Spirit"), que contou com a cenografia impecável de Daniella Thomas - há um momento em que chove no meio do palco durante incontáveis dez ou quinze minutos.
A peça, Não sobre o amor, do diretor Felipe Hirsch, baseia-se no livro de mesmo nome do escritor e teórico formalista Victor Shklovsky, no qual o autor reúne sua correspondência com a romancista franco-russa Elsa Triolet. Mais uma vez, o cenário criado por Daniella Thomas dá um tom intimista à obra e isso é fortalecido pelos únicos atores em cena: Leonardo Medeiros e Arieta Corrêa, que contracenam, literalmente, subindo pelas paredes, pois o cenário é uma caixa gigante presa ao fundo do palco onde estão pregados mesas, cadeiras, a cama etc.
A coisa ruim dessa peça é que, diferentemente da multimídia Avenida Dropsie, não fui assisti-la. Obtive todas essas informações no site do Guia da Folha, pois, com os ingressos na mão, no horário e tomado banho, não pude ver a peça porquê ela fora cancelada devido a problemas técnicos - segundo a atendente da bilheteria. É claro que eu fiquei extremamente feliz: saí de casa com DUAS horas de antecedência, minha mulher saiu uma hora mais cedo do trabalho, enfrentamos um metrô típico de São Paulo (era dia de rodízio, e como o único lugar que queremos defumar é o pulmão, respeitamos a lei.), não jantamos, fizemos três baldeações e ainda pegamos a fila para carregar o bilhete único. A verdade, e aí me valho da teoria que mais gosto, a da conspiração, é que o SESI estava sediando o Encontro Empresarial Brasil e Argentina (entendem o "visitante' do título?) e, evidentemente, fala mais alto quem tem mais dizer... A moça disse que poderíamos trocar o ingresso para um outro dia, ou ter dinheiro das entradas de volta. Escolhemos a número um, e para o aumento de nossa alegria, a próxima, que era a também a última, data do espetáculo já estava lotada.
Derramando sorrisos e alegrias pelos poros, decidimos caminhar até a Consolação, pois lá no Conjunto Nacional há um restaurante bacana que, depois das sete, cobra só oito paus no "coma à vontade". Até aí tudo bem, pois nada é como caminhar pela Paulista. É, provavelmente, a experiência mais diáfana que se pode ter sobre São Paulo. Mais do que cruzar a Ipiranga com a Avenida São João, mais do que passar um dia na 25, mais do que ir morrer no Brás. Mesmo que o cenário prevaleça, imponente e glamouroso, as pessoas são todas as pessoas de todos os tipos que compõem a massa disforme, grossa, que se desloca de uma lado, num movimento ora centrífugo, ora centrípedo, dentro dessa caldeira de insanidades que é nossa cidade.
No restaurante a promoção que nos atraíra havia acabado e os preços estavam deste tamanho. Decidimos por comer um lanche qualquer e fomos ver o que estava passando no Cine BomBril, afinal já estávamos ali mesmo.
Assistimos ao filme "O Visitante" - roteiro e direção do americano Tom McCarthy, que já havia dirigido "O agente da estação de 2003 - e, foi a melhor coisa que aconteceu naquela quinta de quase outono, em que o Éolo mais parece uma puta cara fazendo cafuné em seu melhor cliente.
Walter Vale, protagonista vivido pelo ator Richard Jenkins, é um viúvo que há vinte anos é professor de uma faculdade em Connecticut. O pó amarronzado de seu ofício é notado quando um aluno lhe cobra o plano de trabalho daquele ano e, na cena seguinte, ele aparece passando corretivo na data do plano do ano anterior.
Walter é obrigado a ir para Nova York como representante da faculdade em um congresso. Chegando em seu apartamento, ele se depara com dois estranhos vivendo lá. Um casal de estrangeiros, Tarek e Zainab, que alegam ter alugado o apartamento de um corretor.
Compadecido dos "hóspedes", ele decide deixá-los ficar. A partir daí, o convívio faz com que se aproximem tanto que Tarek, que é percussionista, ensina Walter a tocar djembê e o leva para tocar consigo no Central Park.
O que mais chama a atenção no filme, sem dúvida, é a simplicidade que permeia os conflitos, e ainda assim, a capacidade do diretor em criar uma ambiente de constante tensão. Evidentemente, com as atuações do elenco, essa não é uma tarefa difícil. Não sou dramaturgo, não sou ator, mas tenho a impressão de que no filme os personagens são sentimentos e não pessoas com sentimentos. Por exemplo, Zainab, namorada de Tarek vivida pela atriz Danai Jekessai Gurira, é a própria desconfiança. O fato de ela e seu namorado serem imigrantes ilegais, faz com desconfie até mesmo de Walter que se mostrou tão caridoso; Tarek é a imagem poética da música, do prazer de viver, de respirar sem medo, de conhecer; Walter é o exato oposto disso. Logo no início do filme, após uma aula de piano com sua professora particular, ele pede para que ela não volte no dia seguinte, confusa, ela pergunta se ele vai desistir e diante da resposta negativa, ela lhe pergunta quantos professores ele já teve antes dela e quando ele responde que foram quatro, ela lhe fala o seguinte: ... o senhor sabe o quanto é difícil uma pessoa na sua idade aprender piano? ... Ainda mais quando não se nasceu com um talento natural para a música, como o senhor... Mudar de professor não vai resolver o seu problema. Mas se o senhor for mesmo desitir, por favor me avise... eu gostaria de comprar seu piano...; A mãe de Tarek, Mouna (Hiam Abbas) que havia fugido da Síria há anos devido à perseguições políticas que levaram á morte de seu marido, é o deslumbramento pueril e imaculado do migrante que, pela primeira vez, conhece lugares e coisas que antes só conhecia pela televisão, ou por fotos.
Já disse: não sou ator e tampouco li Pirandello, ou Stravinsky, mas as atuações realmente me impressionaram.
A trama toda é rasgada por uma explícita crítica ao preconceito americano com imigrantes e ao modo como são feitas as "investigações" para se deportar alguém do país, depois do onze de setembro. O tempo inteiro símbolos americanos são apresentados ao lado de situações paradoxais, como quando Tarek é preso pela imigração e na parade do centro de detenção aparece um cartaz onde se lê: os imigrantes são a força dos EUA.
Além de tudo isso, O Visitante traz à tona a questão do cansaço de ser você mesmo a vida toda. De ter o mesmo trabalho, de tentar fazer as mesmas coisas, de fugir daquilo que é novo, de fingir importância naquilo que faz há muito tempo.
Poesia em seu estado mais sincero. Assitam.
P.S. na sáida, extasiados, caminhamos de volta até a estação Triannon, pra dar tempo de fumar um cigarro, discutir o filme etc, e, na calçada do parque Triannon, bem na parte que em o Bandeirante, brota imperioso da calçada, nos deparamos com um ser sem cor e com cheiro, aliás muito forte, que falava ao telefone sem fio (sem fio, sem antena, sem sinal, sem tecla) com seres intergaláticos... É São Paulo... Ainda bem...
sábado, 21 de março de 2009
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